segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Homens de hoje, o que é o real?

No poema “Lucrécio na janela”[1] de Christian Prigent, o real se faz presente. O poema recoloca Lucrécio em nosso tempo. O poeta latino “vem à janela” e se dirige aos homens.
A janela do tempo nos convoca a uma nova reflexão da poesia a partir do conceito de real. O poema é escrito em francês, mas também tem versos em latim, retirados do poema De Rerum Natura[2] de Lucrécio. Logo no início, Prigent põe a falar o poeta romano:

(...) homens do futuro, salve!
                                                            2
Eu disse: eu vejo as coisas se fazendo em todo o campo do vazio
                    Eu vi o real se fazer no vazio, eu vi o real
                    esvaziar os nomes da língua.
                    Eu vi o vazio dos nomes face ao movimento do engendramento
                    das coisas.[3]

A escrita está situada nos vazios que vem interromper o tecido da linguagem de toda produção humana, e ela deixa um traço ativo do negativo. O poeta Prigent utiliza fórmulas negativas como “inominável, in-imaginável, im-pensável”[4] para designar o buraco do real. Ele concebe uma formulação do real para refletir sobre a poesia contemporânea. Prigent nomeia a poesia como “a simbolização paradoxal de um buraco”[5] e diz que ela tem por tarefa “designar o real como buraco no corpo constituído das línguas”[6] a cada “momento da experiência (do outro, do mundo, do corpo, da irrupção inconsciente)”[7]. Designa, então, este buraco “desenhando enfaticamente as bordas[8][9], de modo não só enfático, mas também ambíguo e enigmático. O poeta explicita: “esse buraco, eu o nomeio real. Real entendido aqui no sentido lacaniano: o que começa onde o sentido pára”[10]. O real, segundo essa concepção, começa lá onde cessa o sentido comumente socializado.
O ritmo, o sopro e o som na compreensão de Prigent, terão uma importância fundamental para favorecer uma aproximação ao conceito de real. Isto porque o ritmo “é o modo de aparição na língua do real como buraco, do real ausente de todo fechamento estabilizado do som e do sentido”. O ritmo também implica algo da repetição, já que ele introduz a perda de gozo. Nesse movimento pulsional que cada poeta impõe à sua própria escrita, ele se defronta muitas vezes com um vazio – delimitado por uma estrutura de borda – que o próprio movimento produz. Ouïssance é o nome dado por Prigent a esse movimento de gozo da língua ritmada e sonorizada. Cito Prigent: “Eu sopro em versos alguma coisa do impossível. (...) um sopro fecundante retoma vigor”[11]. E o poeta vai trabalhar com o real, construindo “equivalentes verbais, sonorizados, ritmados”[12].      
Ao escrever o poema, então, o poeta descobre, ao longo de sua experiência e trabalho com a língua, um “ponto de poesia” a partir do qual, na tensão da escrita, ele possa trazer algo do impossível da ‘estrutura’ do real. Esse real que, para a psicanálise, é visto como o impossível, aquilo que é “radicalmente perdido, excluído do simbólico”[13]. Lacan já havia anunciado na Lógica do fantasma que “o impossível é o real, simplesmente”[14]. Essa fórmula lacaniana aqui apresentada pode parecer mais natural se excluirmos a simbolização da jogada. A simbolização seria uma exigência da categoria do ‘possível’. Na verdade, como sabemos, a coisa não é tão simples assim. Mas, não irei discutir esse ponto neste trabalho.        
No seminário R.S.I, Lacan afirma que só podemos manejar o real como “o expulso do sentido, quer dizer, o impossível como tal”[15]. Ele discorre sobre o real de maneira clara e precisa. Real enquanto aversão do sentido e não pertencente ao mundo exterior. Real que “não é o mundo e não há a menor esperança de alcançá-lo pela representação”[16]. Real que escreve o que é “estritamente impensável”[17] e introduz uma ‘nuance diferencial’. Prigent irá trabalhar com essa antinomia entre o real e o sentido.
Além disso, na poesia contemporânea existe um movimento de trabalho contra as representações priorizando o real, desconstruindo não somente as representações picturais e seu modo de significação, mas também a organização de toda referência. A poesia, nessa concepção, não pode mais fazer imagens, ou mais precisamente, ela se afasta do visível. Sabemos que dar imagem é dar forma, é enquadrar as coisas, construir uma circunstância, um fato que possa ser contado, olhado. A poesia, nessa desfiguração da imagem opera a partir de uma perda de imagem, de uma “deflação imaginária”[18] visando o real. A estratégia do poeta, nessa formulação que faço, é a de abrir um buraco, isto é, esburacar o campo da legibilidade e para isto ele não só fura as imagens como também os discursos. O que permite deslocar o eixo da leitura desde a realidade tal qual ela é, até esta falta que supõe o irrepresentável. Assim, o irrepresentável ao trazer consigo a falta da imagem, porta um buraco; o buraco do real. E a poesia, enquanto experiência, tenta fazer borda a esse buraco.
Em outro momento do poema “Lucrécio na janela”, os versos falam da proximidade do real com De rerum natura:
                          
                      Homens do futuro, traduzam meu título:
                      De rerum natura = Do Real (do Inominável).
                      (...) Homens de hoje, o que é o real?
                      Eu disse: rerum natura = começo, engendramento, vazio, movimento.
                      Não: às coisas feitas. Mas: as coisas em via de nascer. [19]

No movimento de engendramento das coisas, o real se mostra como material verbal, real da fonação, “real da escrita detalhada, desossada, em um infatigável labor do extremo da língua”[20]: a materialidade mesma do poema. Há um moterialisme[21] operando nesse engendramento. Os versos de Prigent apresentam o real e ao mesmo tempo introduzem algumas questões pertinentes ao poeta Lucrécio, a saber; as coisas e o vazio. É a própria matéria da linguagem que está em jogo. No século I a. C. o poeta latino dizia, em sua visão materialista do mundo, que toda a natureza consiste apenas em corpo e vazio.


Somente os corpos e o vazio existem. E o resto? E tudo que nos cerca? Os homens, os cavalos, as                                         montanhas, a Lua, e também o azul do céu, a suavidade do ar, o pôr do sol, e a beleza, o amor, a tristeza será que isso não existe? Sim, para Lucrécio, isso existe, mas não verdadeiramente, não absolutamente. São apenas propriedades ou ainda acidentes (eventos) dos corpos e do vazio.[22]


A natureza de que se trata na concepção lucreciana é a própria materialidade da linguagem. Lucrécio opera com o corpo da linguagem e com o som das palavras manipulando a estrutura da linguagem. Enquanto poeta materialista, ele antecipa todas as pesquisas que partem do ‘materialismo da palavra’. Ao utilizar as letras do alfabeto como modelo para explicar sua teoria sobre o ‘cosmos’, Lucrécio utiliza a palavra latina elementa, que, semelhante à palavra stoicheion (elemento) em grego, ao mesmo tempo em que se aproxima do elemento físico (o átomo), se aproxima da letra. Nessa espécie de biblioteca de Babel, o poeta argumenta, em sua teoria atomista, que “todos os elementos indivisíveis que compõem todos os corpos reais ou possíveis dos mundos”[23] são comparáveis “às letras do alfabeto que compõem todas as palavras da linguagem”[24]. Assim, com cerca de vinte e cinco letras, o poeta latino podia escrever “as milhares de palavras de uma língua”[25]. Desta forma, a escrita acontece em meio às letras do alfabeto que se arrumam no espaço branco da página; no espaço vazio.
Relembro que quando Lacan está debruçado em seu trabalho com o objeto a na conferência La Troisième, ele diz que a letra “está ao alcance da mão”[26], e recupera Aristóteles em sua proposição do ‘elemento’. O filósofo, ao se propor a dar uma idéia do elemento, “tem de se valer de uma série de letras, rsi[27], exatamente igual a Lacan, que trabalhou com “um certo número de letras”[28] e, em especial, a letra ‘a’.
No Seminário XX, Lacan afirma, com uma certa ironia, que vai se limitar à letra A – “aliás, cito  Lacan, a Bíblia só começa com a letra B, ela deixou a letra A – para que eu me encarregue”[29]dela. O passo seguinte foi dado em direção à lalangue, partindo da idéia de que “não há letra sem lalangue[30].            
Há, em toda operação do real[31], uma res a ser enunciada. A mesma res que ecoa nas letras de Francis Ponge, evocada por Lacan no seminário “O saber do psicanalista”. A res que se reporta à coisa, à propriedade, àquilo que exprime o que existe. “Escrevam R.E.S.O.N Escrevam! Concedam-me esse prazer”[32], diz Lacan. O que ressoa nessa grafia pongiana? Uma questão que toca não só aos matemáticos, mas também a alguns poetas, entre eles, Ponge, Lucrécio e Prigent. Lembremos Lacan nesse seminário. Ele se pergunta: será que aquilo que ressoa é a origem da res, daquilo que a realidade é feita? Serão ‘os princípios das coisas’? argumentaria Lucrécio. Então, Lacan evoca a matemática dizendo que se pode extrair algo da linguagem à título da lógica. E Ponge com sua formulação também alcança esse ponto do impossível da linguagem. Há algo mais além nessa interrogação lógica: R.E.S.O.N.
E a razão das coisas, “o que é ela senão mais exatamente a réson, a ressonância da fala estendida, da lira estendida ao extremo”[33].
Os versos de Prigent traduzem ainda um esforço no estilo poético:

Real: cada coisa em movimento, infixado, inominável.
Mundo aberto. Vazio + motilidade
Face a esse desafio: a língua.
Quer dizer: a paixão neológica
Porque isso (o que há a fazer) vem nas fendas da lógica
(descobre a exceção do real nas línguas)[34]  

     Uma exigência de poesia leva o poeta a aceder ao estilo poético. E isto não ocorre sem esforço, até mesmo com um trabalho de forçar a língua. O poeta, contudo, exercerá sua voz com um estilo rugoso e cruel, distante do “eu” pessoal. Aliás, o estilo na poesia não é o homem mesmo, com o seu natural talento e seu jeito linguarudo de ser. Prigent esclarece que “o que interessa no homem, enquanto estilo, é o que rugosamente, cruelmente, faz falta ao caráter pessoal da voz humana”[35]. Ou seja, a sua singularidade, que é vai ser trabalhado como uma viaonceito de realo estabilizado do som e do sentido"algo inseparável de “um ponto especifico de real”[36], algo que escapa a toda tomada da palavra, da imagem e da representação. E é precisamente no fato de não reduzir o real ao impossível de ser simbolizado, mas, ao contrário, fazê-lo trabalhar como causa, isto é, junto com o ato da escrita inventando o estilo do poeta, que essa singularidade pode se mostrar.
Os versos do poeta ainda pontuam:
                            
                                 - articula, poeta, articula!
                                               12
                                 O que verá perto de vocês, Ponge (Franciscvs
                                 Pontius Nemavsensis[37] Poeta:
                                 no meu poema, a língua não diz somente a natureza (o real):
                                 ela funciona como a Natureza, ela trabalha como o real (“homologia de
                                 funcionamento”).[38] 

A questão do funcionamento do real foi bem trabalhada por François Balmès, no texto “O Real, será que isso funciona?”. Balmès enuncia um caminho para resolver essa questão; o “real marche[39] à sua maneira. (...) Marche, no duplo sentido de caminhar, progredir, e de funcionar”[40].
No entanto, o poeta enuncia que a ‘língua trabalha como o real’, o que inclui pensar lalangue / lalíngua participando da invenção poética. Mas isso é tema para um outro trabalho.



[1] “Lucrèce à la fenêtre”. Poema composto de18 partes, no qual Prigent defende a importância do real para a escrita.   
[2] Da natureza. Poema inacabado de Lucrécio (Titus Lucretius Carus), poeta romano do século I A.C. Este poeta nos legou a mais longa obra materialista da Antiguidade, segundo Francis Wolff.
[3] No original : “(...) hommes du futur, salut! / J’ai dit: per totum video inane geri res. / J’ai vu le réel se faire dans le vide, j’ai vu le réel vider les noms de la langue. / J’ai vu le vide des noms face au movement d’engendrement des choses”. PRIGENT, Christian. Salut les anciens/ Salut les modernes. Paris : P.O.L. éditeur, 2000. p. 11-12. 
[4] No original: “In-nommable, in-imageable, im-pensable”.
[5] PRIGENT, Christian. Conferencia datada de 1998, com o título “Thèses sur la poétique”.
[6] No original : “désigner le réel comme trou dans le corps constitué des langues”. PRIGENT, Christian. L’Incontenable. Paris: P.O.L. éditeur, 2004. p. 17.
[7] PRIGENT, Christian. (http://remue.net/article.php?id_article=621). Entretien avec Hervé Castanet – publicação digital.
[8] Na psicanálise, quando falamos da pulsão (e seu ritmo) estamos de início falando de algo que está na fronteira entre o psíquico e o somático, mas, também, apontando que o seu movimento de ida e volta caracteriza uma estrutura de borda que delimita um vazio central. Daí, quando Prigent está falando do desenho das bordas, ele está fazendo uma relação entre o movimento pulsional, o buraco e o real.
[9] “dessinant emphatiquement les bords”. PRIGENT, Christian. L’Incontenable. Paris: P.O.L. éditeur, 2004. p. 17.
[10] No original: “ce trou, je le nomme réel. Réel s’entend ici aus sens lacanien: ce qui commence là ou le sens s’arrête”. PRIGENT, Christian. Ibidem.  p. 17.
[11] PRIGENT, Christian. “Lucrécio na janela” in Salut les anciens. Op. Cit. p. 15
[12] PRIGENT, Christian. L’Incontenable. Op. cit. p. 11.
[13] HALFON, Nélida. En el nombre de la falta. p. 35.
[14] LACAN, Jacques. La logique du fantasme. Lição de 10 de maio de 1967, inédito.
[15] LACAN, Jacques. Seminário R.S.I (inédito). Lição de 11 de março de 1975.
[16] LACAN, Jacques. La tercera. Buenos Aires: Ediciones Manantial, 1988. p. 82.
[17] LACAN, Jacques. Seminário R.S.I (inédito). Lição do dia 10 de dezembro de 1974.
[18] Expressão do psicanalista Gérard Wajeman.
[19] PRIGENT, Christian. Salut les anciens/ Salut les modernes. Op. Cit. p. 14-16. 
[20] BOONS, Marie-Claire. “Paul Celan en Provence” in Cahier de la École du Psycanalyse Sigmund Freud, 2001, p. 95-96.
[21] LACAN, Jacques. Conferencia em Genebra sobre el síntoma. Buenos Aires: Ediciones Manantial, 1988. p.126. Moterialisme: junção de materialismo e de palavra (mot), dando um estatuto de materialidade para a palavra. Para Lacan, é nesse ‘materialismo da palavra’ que se ancora o inconsciente.
[22] WOLFF, Francis. “Tudo é corpo e vazio” In Poetas que pensaram o mundo. p.69.
[23] WOLFF, Francis. WOLFF, Francis. “Tudo é corpo e vazio” In Poetas que pensaram o mundo. Ibidem. p. 74.
[24] WOLFF, Francis. “Tudo é corpo e vazio” In Poetas que pensaram o mundo. Ibidem. p. 74.
[25] WOLFF, Francis. “Tudo é corpo e vazio” In Poetas que pensaram o mundo. Ibidem. p. 74.
[26] LACAN, Jacques. “La tercera” In Intervenciones y textos. Buenos Aires: Manantial, 1993. p. 95.
[27] LACAN, Jacques. “La tercera” In Intervenciones y textos. Ibidem. p.95.
[28] LACAN, Jacques. O Seminário: Livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.  p.40.
[29] LACAN, Jacques. O Seminário: Livro 20: mais, ainda. Ibidem. p. 64.
[30] LACAN, Jacques. La tercera” In Intervenciones y textos. Ibidem. p. 95.
[31] Lembro que Lacan, no seminário Le sinthome (lição de 13/04/1976), diz que o real é sem lei e não tem ordem. Assim, Lacan só conseguiria articular para os seus ouvintes, algo que concerne a “um pedaço de real”. 
[32] LACAN, Jacques. Seminário inédito “O saber do psicanalista”. Lição do dia 6 de janeiro de 1972.
[33] PONGE, Francis. Pour une Malherbe. P. 97.
[34] PRIGENT, Christian. Salut les anciens/ Salut les modernes. Op. Cit. p. 17.
[35] PRIGENT, Christian. La voix-de-l’écrit. Nèpe, 1987. p. 3.
[36] CASTANET, Hervé. Le choix de l’écriture, Himeros / La Rumeur des Ages, 2004. (Introdução ao livro.) 
[37] De Nemauso, cidade da Gallia, hoje Nîmes.
[38] PRIGENT, Christian. Salut les anciens/ Salut les modernes. Ibidem. p. 19.
[39] Observação da tradutora Analucia Teixeira Ribeiro: (...) “como indica o Petit Robert, a expressão ça marche, oriunda do francês familiar, pode ter, entre outros, o sentido de ‘funcionar’ (falando de um mecanismo) ou de ‘produzir o efeito desejado’. (...) François Balmès ressalta os vários sentidos do verbo marcher: caminhar, progredir e funcionar. Como em português não encontramos equivalente com esse duplo sentido, optamos ocasionalmente por ‘caminhar’, ir bem ou funcionar”. Nota n. 2 do texto “ O Real, será que isso funciona?” In: Do Real, o que se escreve? Revista da Escola Letra Freudiana. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009. p. 25.      
[40] BALMÈS, François. “O Real, será que isso funciona?” In: Do Real, o que se escreve? Revista da Escola Letra Freudiana. Ibidem. p. 19.